sábado, 15 de dezembro de 2012

Novo lar



Logo na entrada havia uma mangueira. Um pé de manga rosa. Estávamos no mês de dezembro e a primavera já ia pelo fim. Aqueles frutos rosa de aparência apetitosa contrastando com o verde das folhas me convidavam a uma suculenta  mordida. Seu cheiro parecia entrar pelas minhas narinas e atravessar todo o meu corpo antes de seguir até o fim da rua. Imaginei todas as tardes quentes que passaria saboreando essas mangas. Esparramada no chão da varanda, vasilha cheia de fruta no meio das pernas, o cabelo balançando com a brisa quente... Como eu sentia prazer só de imaginar! Arrancar aquela casca rosa com os dentes para encontrar a polpa amarela, doce e suculenta, escorrendo pelo canto da minha boca, pelos meus dedos, pingando na minha saia estampada...

terça-feira, 27 de novembro de 2012

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

In memoriam



Eis que surge materializado na minha frente, em meio aos comandos de programação que não sei executar, um distinto senhor. Olhos azul piscina, cabelos muito brancos, bochechas coradas e sorriso simpático. Russo. Terno engomado, gravata borboleta e tênis. Porque a idade avançada já não permite o desconforto de certos sapatos.
Saído de um livro texto para Engenharia - ou melhor, ELE é o livro texto - somente para me dar esta lição: no fim tudo deve ser simples.

Ali, em pé, na frente do quadro negro, em meio às carteiras e olhares confusos dos estudantes ele me falou: 

 "Não importa o quão árduo seja o seu trabalho, minha filha. Você tem que trabalhar duro, lutar, mas no fim tudo deve chegar a uma simples equação de fácil solução."

Obrigada, doutor Popov¹! O senhor nunca imaginaria que suas palavras em russo, ditas a um aluno brasileiro de origem alemã, hoje um tanto rabugento, chegariam aos meus ouvidos. Prometo guardar com carinho as sábias palavras e tentar colocá-las em prática.

Em uma singela homenagem póstuma, enuncio aqui uma simples lei da Física que resolve incontáveis problemas pelo mundo afora.

Para lembrar:

“Cê é igual à raiz quadrada de a ao quadrado mais bê ao quadrado menos dois a vezes bê vezes o cosseno de téta.”

Uma pena essa não poder ser aplicada à vida!

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¹ E.P.Popov (1913 – 2001) escreveu, dentre muitas coisas, o livro “Resistência dos materiais” e foi pioneiro no estudo do comportamento inelástico e resposta sísmica do concreto armado e aço. Sabia das coisas o doutor Popov, afinal “ o mundo é mesmo de cimento armado”


quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Saldo do fim




Uma confissão
Muitas ofensas
Um pedido de perdão
Muitas lágrimas

Três gatos na sala

Nove espasmos
Dez espasmos
Uma noite
Um adeus
Dois travesseiros na cama

Três gatos no quarto

Duas escovas no banheiro
Duas canecas no escorredor
Duas tigelas no armário
Trinta reais em cima da cômoda
Oito cabides
Cinco gavetas vazias


Dois destinos


Três gatos no sofá


  

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Sobre a decepção amorosa


Ana fez aquela pergunta de repente, como se a tivessem soprado nos seus ouvidos. Antes da resposta, um breve momento de silêncio. "Estou". Ana ouviu e chegou a esboçar um sorriso, aguardando a continuação da frase, que em sua cabeça seria: "brincadeira". A correção não veio. Não era brincadeira, era sério. "ESTOU", ecoava em seus ouvidos. "ESTOU". Ana estava confusa, decepcionada, chocada. A decoração pré-adolescente do quarto de Luíza começou a girar ao seu redor. A parede lilás se confundia com o teto. Os corações de pelúcia coloridos em cima da cama rasgaram-se ao meio, soltando a espuma branca pelo chão. Os vampiros brilhantes e os lobisomens saíram de dentro dos seus livros e se juntaram ao Justin Bieber rindo e zombando de Ana. As bonecas aproveitaram para sair do fundo do baú e cantar, girando numa roda:

 "com queem, com queem, com queem seráá que a Ana vai casaar..."

            A música dos rebeldes tocava ensurdecedoramente até que a Hermione apareceu, girou sua varinha e, apontando para Ana, gritou: "expelliarmus"! Mas Ana já estava desarmada.
            Chorou, lamentou-se, demorou a pegar no sono naquela noite. Quando dormiu, sonhou que estava correndo livre, num quintal imenso de uma casa minúscula. O quintal era todo forrado com um carpete cinza, muito limpo e fofo, que massageava os pés de Ana enquanto ela corria alegre. De repente, pessoas chegaram ao terreno, levaram muitos móveis, construíram uma casa enorme e Ana se sentiu sufocada. Sentiu falta de ar, precisava se esforçar muito para continuar respirando... Acordou aflita, estava com dor de cabeça. A primeira palavra que lhe veio à mente foi "ESTOU".

Comeu uma torta de limão. Achou azeda. Chorou. 

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Paz


Pedi a ela que me deixasse em paz.
Ofendida, respondeu (como sempre odiei) ok
e desligou na minha cara.
Depois de tanto tempo ainda não sabe?
Paz!
Sem ela, essa palavra são só três letras agrupadas ao acaso.
Ao lado dela aconteceram os meus raros momentos de paz.
Nos braços dela.
Com a cabeça no peito dela.
Sentindo o cheiro dela.
Olhando o sorriso dela
e os olhos dela que me olhavam.
Olhos onde eu podia me ver.
Ver-me claramente.
Ver-me sem os disfarces usuais.
Estes, eram para as outras pessoas, não para ela!
Ela me deixava nua,
 despida,
descabelada
Esvaziava-me para depois me encher,
completar.
Com ela,
ali,
nua,
aquecida pela sua pele,
embalada pela sua voz,
seu respirar,
seu pulsar ,
seus “ésses” puxados em tom rouco...
Ali, eu podia ser qualquer coisa.
Eu podia ser tudo.
Eu podia ser nada.
Eu ERA e me bastava.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Royal


                Dois beijinhos e um sorriso bobo. Era tudo o que conseguia fazer antes de permanecer em quase absoluto silêncio, só quebrado por hã-rãns e risadinhas inibidas vez ou outra. Era assim toda vez que a via. Você é tão diferente pessoalmente – dizia ela – não sabia que era tão tímida! E continuava a falar, sempre sofrendo por uma  paixão, a usar os ouvidos receptivos de Paula e os seus conselhos.
                Paula não é tímida, nunca foi. O que a emudecia na presença de Cris eram aqueles olhos! Aquele olhar castanho e brilhante. Gostava de se ver naquele olhar! Mergulhada no mistério daquele castanho, emoldurada por aqueles imensos cílios! Os maiores e mais bonitos que ela já viu. Cris é desse tipo de pessoa que fala com os olhos, sorri com os olhos, sofre com os olhos... E assim, absorta, perdida naquele olhar, Paula nem se dava mais conta de qual rumo a conversa havia tomado, até ser acordada por um “Hein!?” de Cris. Recompunha-se e respondia pacientemente a amiga de coração aflito, com o seu a saltitar no peito.
                Para sua sorte, naquele dia a música estava alta e o seu corpo continuou ao ritmo do “tunti-tunti”. Sorte maior ainda haver outro amigo, um novo interlocutor para Cris, enquanto Paula estava livre para simplesmente observar.
                Dois beijinhos e um sorriso bobo. O sorriso permaneceu no rosto, o balanço da música no corpo. Azul Royal! Ninguém fica bem de azul Royal! Paula até que tolerava a cor, desde que longe de qualquer mulher, inclusive dela mesma! Azul Royal – repetiu silenciosamente – como pode ela me aparecer de blusa azul Royal e ficar linda? Linda! Os olhos brilhando e os cílios sacudindo como se gritassem: Olhem como fico linda de azul Royal! Esse azul, mais claro que azul marinho, mais escuro que turquesa... Definitivamente, azul Royal não fica bem em ninguém! Neste momento só a cabeça ainda balançava no ritmo da música. E a lata de cerveja balançando na mão. Fazia isso quando estava tensa. Linda de azul Royal! Como pode? Não é possível que paixão cause uma coisa dessas! De acordo com Paula, as loiras ficavam verdes, as morenas amarelas e as negras perdiam seu brilho quando usavam azul Royal. Quanto às ruivas ela não sabia. Nunca vira uma ruiva usando essa cor, mas achava que também não devia ficar muito bem.
                Cris é morena – pensava – tem olhos castanhos... Os mais lindos, expressivos e misteriosos olhos castanhos que eu já vi. E ainda consegue ficar lindíssima de...
                Azul! Paula se espantou.  Acordou de seu transe e por um momento pensou ter dito aquilo em voz alta. Mas logo foi socorrida pelo “hein!?” tão conhecido de Cris, esperando alguma resposta sua.
                Paula, que não havia escutado uma palavra sequer da conversa ruboreceu e gaguejou: é... desculpa, eu... estava distraída com a música. O que você estava falando mesmo?
Os olhos! – respondeu Cris . Olhos? É! Da Letícia! Não consigo tirá-la um minuto da cabeça. Não são os olhos mais lindos que você já viu? Tanto mistério naquele azul...

terça-feira, 10 de julho de 2012

Magia cotidiana


Sorriso banguela de criança,
Gatinhos brincando,
Risada de bebê
Passarinho tomando banho de areia
Borboletas acasalando
Música
Luz do Sol atravessando as folhas das árvores
Onda voltando e encontrando com onda chegando
Massa crua de bolo passando da vasilha para a assadeira fazendo cascata
Guarda-chuva colorido no meio dos pretos
Mar de guarda-chuvas atravessando a faixa de pedestres
Cheiro de sal com filtro solar...


sexta-feira, 6 de julho de 2012

Fim

Tudo terminou como começou:
bonito e sereno
Sob turquesas tons que o céu exibia límpido,
ninguém seria capaz de diferenciar o brilho dos olhares.
Mas não havia mesmo nenhum espectador a observar aqueles olhos,
antes, ansiosos e alegres
agora, pesarosos e cheios de esperança.
Só o brilho era o mesmo.
A única testemunha, o céu.
Imponente e majestoso,
dono de todas as verdades,
guardião de todos os segredos,
sorria.
Sorria sozinho.
Piedoso das criaturas que desconhecem o porvir.